sábado, 24 de julho de 2010

PEDAÇOS DE TEMPO

      Entre a sístole e a diástole de meu batimento cardíaco, despenca de minhas mãos o relógio de bolso. Lembrança de meu pai, que foi do pai do pai de meu pai. Um relógio de caixa metálica, tampa talhada manualmente com motivos florais. Em queda livre, sem o cordão de prata preso à cintura, o relógio sequer tem tempo de movimentar os ponteiros antes do toque com o chão.

      Uma fração de segundos para aceitar, na aposta de jogo, um relógio. Um lance de sorte do carteado e meu bisavô o carregou como prêmio por toda vida. Do pouco a partilhar após sua morte, o relógio foi para o bolso de um sobrinho desafeto. Incomodado pelos sonhos, o devolveu a meu avô. Pode assim ter tempo para sonhar em paz.

      Meu avô, sempre medroso e desconfiado com as coisas do mundo terreno e do outro, não quis esquentar nas mãos o relógio, entregando-o a meu pai, o filho varão depois de quatro mulheres.

      Meu pai foi guardião do tempo. Manteve as engrenagens em perfeita harmonia. Sincronizou cada momento. Usou a vida não só para viver, mas também para lembrar. Viveu intensamente o tempo para criar cada um dos três filhos.

      Nesse ínterim entre a sístole e a diástole, no despencar do velho relógio de bolso - o cordão prateado dançando no espaço - a vida fazendo uma volta, os ponteiros em sincronia, lembrei de minha mãe quando fez pesar em minhas mãos o relógio de meu falecido pai.

      O chão interrompeu a perfeita sincronia dos movimentos, partindo em pedaços o tempo. Pensando no que tenho feito do meu tempo, fui absolvido por meu filho, que me ajudou juntar os pedaços.

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Pedaços de tempo by Ronaldo Albé Lucena is licensed under a Creative Commons

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