domingo, 15 de agosto de 2010

A MORTE

Dizem que o homem é o único animal que sabe da finitude da vida. Sabe das universais experiências de nascer e de morrer. Nascer que extrapola nossa capacidade de memória e acaba sendo experiência maior de nossos pais. Mas morrer nos faz passar a vida inteira ocupando esse espaço de tempo sendo férteis em imaginação para crermos que não vamos morrer, pelo menos não tão cedo. E nesse período acabamos criando mais vidas que prolongam as nossas.


É na morte dos outros que nos aproximamos da nossa própria morte. De tudo que fica por ser feito, de acreditar que as coisas não possam funcionar na nossa ausência, na mudança dos destinos dos que nos cercam - que na realidade nunca nos pertenceu. Na vida não há certificados de propriedade.

Dizem que os porcos também teriam a certeza dos dias contados. E a resignação comovente do gado na linha do abate? Segue reto, calmo, sem resistência no caminho da morte. Seriam mais felizes, talvez, os outros animais?

Resistência talvez seja a palavra chave. O querer permanecer, querer ir mais, querer ver, existir, não perder o espetáculo e continuar comandando o espetáculo. E é essa resistência que cria e constrói também a medicina. A luta pela saúde, conseqüentemente pela vida, sobrevida, pelo tempo. E é na morte que começamos nossa luta pela vida. Na dureza fria do cadáver na sala de anatomia, no corpo de um ser humano que não conhecemos, que teve sua história, seu fim. Não sabemos de onde veio, se chegou a amar alguém ou ser amado, quem deixou, quem o maltratou ou marginalizou. Não sabemos nada. Dissecamos músculos, vasos, nervos, vísceras. Aprendemos.

A morte cruza pela nossa vida de médicos. Talvez mais presentemente, talvez menos. E vivemos acompanhando a nossa luta e a dos pacientes. Quem sabe ficamos mais frios, nos protegemos, mas de vez em quando ela vem e mostra a cara. Às vezes se mostra bem viva, esperançosa, carente de uma palavra. Mas nem sempre temos a boa palavra.

- Quanto tempo eu tenho de vida, doutor?

Que pergunta cruel, pensei naquela hora. O transdutor convexo que eu deslizava na pele daquele abdômen transmitia, em ondas ultrassônicas, a imagem de um fígado completamente metastático no monitor, várias linfonodomegalias no retroperitônio e líquido livre.

- Doutor, eu sei que tenho pouco tempo de vida, eu sei que vou morrer, mas tenho que organizar minha vida. Eu tenho um filho excepcional que depende de mim. Eu quero deixar tudo organizado. Eu já tenho deficiências neurológicas. O meu médico acha que já tenho o cérebro comprometido. Eu tenho um ano? Seis meses? Quanto?

E eu tenho que responder isto? Pensei na hora.

Mas respondi como sempre procurei agir na maioria das vezes que pensei na morte, que cruzei com ela, que a vi, que a cheirei, que a senti, que a refleti:

- Faça como se fosse amanhã seu ultimo dia.

Texto publicado na antologia Histórias e estórias médicas da Unimed Porto Alegre


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