sábado, 19 de novembro de 2011

O CORO DAS IRMÃS





Quando Antonio acordou da anestesia não tinha ideia de onde estava. Aos poucos foi ouvindo vozes, bipes e sons de respiração forçada. Quando um sorriso largo abriu-se diante de seus olhos, a voz da enfermeira o saudou de volta à vida. Ela trouxe mensagens dos seus que esperavam do lado de fora da unidade de tratamento intensivo, ansiosos para vê-lo no horário permitido às visitas.  Reconheceu o barulho dos respiradores, dos monitores, dos aparelhos de radiografias. As vozes se misturavam em tons apreensivos, momentos de tranquilidade, explicações e de conforto. Antonio estava de volta, isso é que importava. Não tinha noção de quanto tempo ficou desacordado, nem tem lembranças de por onde sua mente viajou. Não sabe se foram sonhos, visões ou outra coisa. Ainda tinha dores no peito e um pouco de dificuldade em respirar. Mas abrir os olhos já havia sido um presente naquela manhã.
A rotina estabeleceu-se na delicada berlinda entre a vida e a morte que foram os dias com cuidados intensivos. Perfurações em veias para coleta de amostras de sangue, radiografias, ecografias realizadas junto ao leito e até uma máquina para fazer o trabalho dos rins que insistiam em não funcionar mais. Antônio tentou resistir a todas as provas, todas as dores, todos os reveses da maneira mais positiva possível. Procurou não ler nos olhos das visitas a tristeza, o desânimo, a culpa que trazia no peito pelo excesso de peso, pelo tabagismo, pelo descuido com o corpo nos últimos anos.
O que mais acalmava Antônio eram as orações e cantos que as freiras faziam na beira do seu leito, sempre à noite. Ele contava que quando escureciam as luzes do CTI no início da madrugada, e os técnicos de enfermagem, as enfermeiras e médicos conseguiam um tempo para descanso, elas chegavam. Aos pés de sua cama elas rezavam e cantavam as canções mais lindas e harmoniosas que  jamais ouvira.
Muitas histórias eu ouvi de Antônio nas manhãs que fui examiná-lo naquele leito de onde ele não tinha forças nem condições de se levantar. Procurei ter a paciência para escutá-lo mesmo sabendo da lista de outros pacientes que me esperavam. Com a fala entrecortada pela respiração difícil, com dores no peito, ele falava entusiasmado das irmãs que cantavam só para ele, todas as noites. Surpreendia, porém, o espanto dele por não entender como as freiras liam seus livros de orações na penumbra da CTI.
Eu não tive coragem de falar nada. Não tive certeza de nada naqueles dias. Ficaram perguntas sem respostas. Foi com tristeza que cheguei naquela manhã e não mais o encontrei no leito. Ele partira desta vida no início da última madrugada. Certamente encantado pelas doces vozes do coro de irmãs que só ele via e só para ele cantavam.

domingo, 30 de outubro de 2011

VOO ENJOADO




Fiquei cuidando os passageiros que entravam pelo corredor do avião. Estava tentando adivinhar quais deles seriam meus companheiros de poltrona. Sentado no meio, seria inevitável eu me somar à tradicional bagunça de passageiros, procurando por espaço para suas bagagens nos compartimentos superiores. As viagens não mudam: malas que deveriam ter sido despachadas brigando com pernas e cabeças de senhores e senhoras. Uma disputa e pressa burras, pois ninguém vai partir nem chegar antes dos outros. Mas as pessoas ainda não se dão conta disto.
A loirosa passou direto, que pena! Só me resta esse gordo de camisa vermelha vir sentar ao meu lado. Eu não mereço pagar pelos meus pecados justamente hoje. A malinha dele não vai caber no espaço exíguo acima de nossas cabeças. Ufa, passou também.  Essas poltronas já são pequenas para mim, imagina esse gordo roncando do meu lado. Aquele sebo escorregando na cara dele deve ser de medo. Além do tamanho todo, deve ter pavor de avião. O piloto vai ter que equilibrar as asas para não pender pro lado em que ele estiver sentado.
Afastado o perigo do obeso, percebi que qualquer companhia na viagem já seria um lucro. Foi quando vi a mocinha falando ao celular, procurando pelo numero da poltrona. Todos estavam sabendo que ela iria encontrar o namorado em Manaus. Ela deixara bem claro na conversa pública desde a sala de embarque. Não deu outra, era ela. Jogou a mochila na poltrona do corredor, acenou para alguém no fundo, tirou um dos fones do ouvido, ajeitou o chiclete no lado direito da boca e descascou:
- O senhor se importa de trocar de poltrona com a minha amiga? Nós estamos viajando juntas e ficamos em filas separadas – explica a garota de cabelos ruivos, já acenando para a tal amiga.
            - Em qual a poltrona ela está? – perguntei já apertando o meu cinto.
            - Acho que é na fila dezesseis. No corredor – completou, tentando me animar, quando percebeu que o meu gesto de apertar o cinto era de não sair dali.
            - Me importo sim. Não quero trocar.
            - Valeu, tio, muita gentileza da sua parte.
            Vi o deboche na cara da garota. Não podia deixar assim:
            - De nada. A propósito, não tenho sobrinha dessa idade – respondi provocando.
            O chiclete dançou nervoso e estaqueou naquela boca irritada:
            - Tomara que não tenha de idade nenhuma.
            - Se for sentar ao meu lado de mau humor, acho que prefiro trocar de lugar.
            - Vou avisar minha amiga - falou saltando da poltrona.
- Peraí, mocinha – respondi – eu disse que acho que prefiro trocar. Não disse que iria trocar. Ou melhor, pensando bem, não vou trocar.
A moça ficou vermelha. Confesso que me arrependi um pouco quando ela sentou com toda elegância de uma elefanta, apertando o cinto e rançou ao meu lado:
- Essa viagem vai ser um saco.
Pelo menos eu já me diverti. Esperei um pouco e acionei o botão chamando a comissária de bordo. Quando ela chegou, muito atenciosa, eu deixei a mocinha mais preocupada:
- Por favor, eu não encontrei aqui os saquinhos, aqueles de plástico. É que eu enjoo muito, sabe, durante o voo. Acho que vou precisar deles por precaução. A senhorita poderia me arrumar alguns?

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segunda-feira, 20 de junho de 2011

NA PELE DOS DEDOS


Do impecável uniforme quase não se via o gingado da saia. Com retidão no caminhar, braços prendendo firme ao peito os livros e cadernos, cruzava os corredores do colégio e as alas do internato. Cedo chegava na capela para as orações. Acendia as velas e distribuía pelos bancos os livros de cânticos.
Aluna do ginásio, mantinha a atenção nas aulas de matemática, latim, francês e inglês. Redobrava esforços nas aulas de artes. Não tinha habilidades para o desenho, mas  o lápis virava parceiro  obedecendo outras ordens de mãos ansiosas. Estas mesmas mãos que se juntavam em orações aflitas, os olhos azulados, fixos no Sagrado Coração.
Aguentava firme o jejum das últimas sextas-feiras do mês. Doze horas para a purificação, merecendo receber o corpo do Senhor, consagrado. Resistia ao terrível enjoo das velas, do incenso e das flores em águas não trocadas. O véu branco sobre a cabeça e a reverência às freiras, por de baixo de olhos tímidos, não demonstravam as aflições por perdão e redenção de pecados.
Que tanta penitência carecia aquela alma clara?, indagavam-se as religiosas. Não conseguiam ver, naquele corpo de curvas escondidas, os pecados que afligiam as suas próprias cabeças.
Mas a ginasiana, esfolando os joelhos na madeira do banco, quando juntava as mãos frente ao rosto, fechando os olhos, diante do Cristo despido, sentia ainda o aroma de suas mais íntimas secreções. Na pele dos dedos, por baixo das unhas.


sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

AFOGADOS



sussura o vento, zunindo d'alma

a calma que transfixa os versos

os verbos os grunhidos mortos

submersos, submersos

a tona liberta o grito

delirante, alucinado, proscrito

afagado da dor sem sorte

a morte dilacera o rito



aura de luz violacea

sangra a aurora o crepúsculo

inerte o brado que fere o músculo

sufocados ventos dissonantes

dos gritos delirantes abafados

das babas, gosmentas, dos afogados

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