segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

autógrafos

oito de dezembro. 2010. início de noite na Rossi Fiateci - Quarto Distrito - Porto Alegre. Noite de autógrafos do livro Conto a Céu Aberto. Dez contos selecionados por concurso juntos com os contos do escritor Fabrício Carpinejar. Entre os dez selecionados a minha pequena história já publicada neste Blog: Dois Barcos no Meu Rio. deixo algumas fotos

domingo, 15 de agosto de 2010

A MORTE

Dizem que o homem é o único animal que sabe da finitude da vida. Sabe das universais experiências de nascer e de morrer. Nascer que extrapola nossa capacidade de memória e acaba sendo experiência maior de nossos pais. Mas morrer nos faz passar a vida inteira ocupando esse espaço de tempo sendo férteis em imaginação para crermos que não vamos morrer, pelo menos não tão cedo. E nesse período acabamos criando mais vidas que prolongam as nossas.


É na morte dos outros que nos aproximamos da nossa própria morte. De tudo que fica por ser feito, de acreditar que as coisas não possam funcionar na nossa ausência, na mudança dos destinos dos que nos cercam - que na realidade nunca nos pertenceu. Na vida não há certificados de propriedade.

Dizem que os porcos também teriam a certeza dos dias contados. E a resignação comovente do gado na linha do abate? Segue reto, calmo, sem resistência no caminho da morte. Seriam mais felizes, talvez, os outros animais?

Resistência talvez seja a palavra chave. O querer permanecer, querer ir mais, querer ver, existir, não perder o espetáculo e continuar comandando o espetáculo. E é essa resistência que cria e constrói também a medicina. A luta pela saúde, conseqüentemente pela vida, sobrevida, pelo tempo. E é na morte que começamos nossa luta pela vida. Na dureza fria do cadáver na sala de anatomia, no corpo de um ser humano que não conhecemos, que teve sua história, seu fim. Não sabemos de onde veio, se chegou a amar alguém ou ser amado, quem deixou, quem o maltratou ou marginalizou. Não sabemos nada. Dissecamos músculos, vasos, nervos, vísceras. Aprendemos.

A morte cruza pela nossa vida de médicos. Talvez mais presentemente, talvez menos. E vivemos acompanhando a nossa luta e a dos pacientes. Quem sabe ficamos mais frios, nos protegemos, mas de vez em quando ela vem e mostra a cara. Às vezes se mostra bem viva, esperançosa, carente de uma palavra. Mas nem sempre temos a boa palavra.

- Quanto tempo eu tenho de vida, doutor?

Que pergunta cruel, pensei naquela hora. O transdutor convexo que eu deslizava na pele daquele abdômen transmitia, em ondas ultrassônicas, a imagem de um fígado completamente metastático no monitor, várias linfonodomegalias no retroperitônio e líquido livre.

- Doutor, eu sei que tenho pouco tempo de vida, eu sei que vou morrer, mas tenho que organizar minha vida. Eu tenho um filho excepcional que depende de mim. Eu quero deixar tudo organizado. Eu já tenho deficiências neurológicas. O meu médico acha que já tenho o cérebro comprometido. Eu tenho um ano? Seis meses? Quanto?

E eu tenho que responder isto? Pensei na hora.

Mas respondi como sempre procurei agir na maioria das vezes que pensei na morte, que cruzei com ela, que a vi, que a cheirei, que a senti, que a refleti:

- Faça como se fosse amanhã seu ultimo dia.

Texto publicado na antologia Histórias e estórias médicas da Unimed Porto Alegre


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sábado, 31 de julho de 2010

DOIS BARCOS NO MEU RIO

     Vejo dois barcos que vem ao longe. Pequenos, deslizam em águas tranquilas. O maior deles, mais colorido, vem tímido. Na proa traz uma carranca assustadora, mas é uma embarcação que flutua leve na água. Não se abala por tormentas ou corredeiras. Navega com tranquilidade e sabedoria desviando obstáculos, conhecendo os caminhos do rio. Sabe calcular a velocidade das águas e onde atracar.

     O menor vem seguindo as rotas do irmão. Traz cores alegres e desenhos enigmáticos de dragões a bombordo e estibordo. Cruza o rio com alegria apesar do medo de águas turbulentas. Dos areais passa longe na liberdade que as barrancas permitem. Sabe ler a lua e as estrelas.

     Eu sou uma pedra neste rio. Estes barcos são tão próximos que os sinto muito meus. Os reconheço de longe quando vem crescendo nos meus olhos. Chegam faceiros, brincam e atracam no remanso. Sou o ponto seguro onde agora podem amarrar suas cordas. Sei que vão partir, seguir e voltar nos rumos do rio, quem sabe encontrar o mar. Agora só me resta ler seus nomes desenhados no casco: João e Joaquim.

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sábado, 24 de julho de 2010

PEDAÇOS DE TEMPO

      Entre a sístole e a diástole de meu batimento cardíaco, despenca de minhas mãos o relógio de bolso. Lembrança de meu pai, que foi do pai do pai de meu pai. Um relógio de caixa metálica, tampa talhada manualmente com motivos florais. Em queda livre, sem o cordão de prata preso à cintura, o relógio sequer tem tempo de movimentar os ponteiros antes do toque com o chão.

      Uma fração de segundos para aceitar, na aposta de jogo, um relógio. Um lance de sorte do carteado e meu bisavô o carregou como prêmio por toda vida. Do pouco a partilhar após sua morte, o relógio foi para o bolso de um sobrinho desafeto. Incomodado pelos sonhos, o devolveu a meu avô. Pode assim ter tempo para sonhar em paz.

      Meu avô, sempre medroso e desconfiado com as coisas do mundo terreno e do outro, não quis esquentar nas mãos o relógio, entregando-o a meu pai, o filho varão depois de quatro mulheres.

      Meu pai foi guardião do tempo. Manteve as engrenagens em perfeita harmonia. Sincronizou cada momento. Usou a vida não só para viver, mas também para lembrar. Viveu intensamente o tempo para criar cada um dos três filhos.

      Nesse ínterim entre a sístole e a diástole, no despencar do velho relógio de bolso - o cordão prateado dançando no espaço - a vida fazendo uma volta, os ponteiros em sincronia, lembrei de minha mãe quando fez pesar em minhas mãos o relógio de meu falecido pai.

      O chão interrompeu a perfeita sincronia dos movimentos, partindo em pedaços o tempo. Pensando no que tenho feito do meu tempo, fui absolvido por meu filho, que me ajudou juntar os pedaços.

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quarta-feira, 21 de julho de 2010

A DISTÂNCIA DO MEU BRAÇO

     Meu irmão desapareceu nas águas salgadas, na distância entre duas vagas. Distância essa maior que a de meu braço para resgatá-lo de suas últimas forças. O perdi de vista na soma de nossos desesperos.

     Foram dias de vigília. Na beira da praia a certeza de revê-lo. A promessa de meu braço ser o primeiro a ampará-lo no retorno. Fiquei lá, dias e noites, guardando cada movimento da maré: cada cheia, cada vazante. Durante o dia as correntes marítimas se alternavam com os ventos nordeste e sul. Tentei adivinhar os movimentos do corpo viajante nas profundezas daquele mar. A lua minguou. Vieram chuvas que se misturaram ao meu choro, intercalando sóis de fevereiro. Contei os cruzeiros do sul e sua geometria. Aprendi a sequência das ondas do mar. Cuidei dos pescadores, dos banhistas, dos olhos que me cuidavam. Fiquei sentado, noite e dia, na beira da praia.

     Nossa mãe e meus outros irmãos também cuidavam do mar. Suas orações e sua fé cerziam as feridas. Os santos, as ladainhas, as rezas alimentavam o espírito. O corpo não tinha fomes. Surgiam notícias de que algo havia sido visto praias acima e praias abaixo. Eu corria para ser o primeiro, mas eram falsas.

     Sete dias. A sétima noite foi chegando. Mais um final de tarde de silêncios humanos na praia. Só o embalar das ondas e seus sussurros que aprendi a decifrar. No final das areias, a cidade mergulhou num sábado de escuridão. Surgiu na praia uma procissão luminosa. Centenas de velas rumo ao mar. Um coro de orações e a face iluminada de Nossa Senhora num andor florido. Pediram por meu irmão, que o mar o devolvesse. O pouco de fé que havia em mim amenizou a revolta. Rezei as orações que sabia e as que inventei. O cansaço me abateu.

     Quando o mar mudou o som, no virar do dia, a voz de meu irmão ressoou no meu ouvido. Abri os olhos e ele estava lá. Meu braço o alcançou.

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